sexta-feira, dezembro 23, 2005

As intermitências da Morte

Acabei de ler o último Saramago (As Intermitências da Morte). Para haver uma noção relativa sobre o meu conhecimento prévio da obra, antes deste havia lido "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", "Ensaio sobre a Cegueira" e "A Caverna", senão por essa ordem então por outra parecida. Gostei de todos eles, mas mais que tudo, gostei bastante da forma como escreve.


Este livro apresenta-se sob o mesmo signo regente de quase todos os outros, ou seja: a história ancora-se numa premissa irreal, narrada em tom de amena cavaqueira, os personagens são designados pelos diferentes nomes das actividades de que se ocupam profissionalmente (o músico/violoncelista, a morte, o espírito que paira sobre as águas do aquário..), não tem localização geográfica específica e há um cão. A história pode resumir-se dizendo que conta a história de um país onde durante um determinado período de tempo, não morreu ninguém. É apresentado o quadro geral das consequências desse facto através de pequenos episódios de personagens ilustrativos, e o final da primeira parte é feito em tom de introdução para segunda, onde toda a narrativa se concentra basicamente em dois personagens - a morte e o músico - até ao final do livro.

O aspecto fundamental de todos os livros de Saramago que li, sempre foram os redemoinhos de consequências que ora derivam do tema central, ora se entrecruzam em outras histórias que vão sendo contadas e que tudo junto perfaz o livro. É nestas descrições de pequenos pormenores que realmente me vou saciando durante a leitura. São surpreendentes por começarem sem sequer se dar por ela e repentinamente conduzirem a uma conclusão atordoantemente afilada, mesmo assim nascidas, com rigens tão modestas. E estes simples pormenores e dissertações de enquadramentos comuns que levam a geometrias complexas, perfazem uma espécie de livro dentro do livro, um suporte tão curioso quanto o suportado. À semelhança de "A Caverna", foi este o motorzinho por detrás de cada página lida, e não há que duas vezes se é coisa que valha a pena ou não, porque é investimento com retorno garantido. Não será, no entanto, um livro para se recomendar a quem nunca leu Saramago antes, pelo menos aos mais impacientes de vós. A narrativa completa-se bem, mas tornou-se realmente viciante chegadas as últimas dezenas de páginas, quando o círculo fecha com acordes maiores. Acima de tudo é um livro que ensina. Que ensina não, que permite aprender. E isso só pode ser bom.


"O cão foi atrás dele para a sala de música, onde a morte os esperava. Ao contrário da suposição que havíamos feito no teatro, o músico não tocou a suite de bach. Um dia, em conversa com alguns colegas da orquestra que em tom ligeiro falavam sobre a possibilidade da composição de retratos musicais, retratos autênticos, não tipos, como os de samuel goldenberg e schmuyle, de mussorgsky, lembrou-se de dizer que o seu retrato, no caso de existir de facto em música, não o encontrariam em nenhuma composição para violoncelo, mas num brevíssimo estudo de chopin, opus vinte e cinco, número nove, em sol bemol maior. Quiseram saber porquê e ele respondeu que não consegui ver-se a si mesmo em nada mais que tivesse sido escrito numa pauta e que essa lhe parecia ser a melhor das razões. E que em cinquenta e oito segundos chopin havia dito tudo quanto se poderia dizer a respeito de uma pessoa a quem não poderia ter conhecido. Durante alguns dias, como amável divertimento, os mais graciosos chamaram-lhe cinquenta e oito segundos, mas a alcunha era por demais comprida para perdurar, e também porque nenhum diálogo é possível manter com alguém que tinha decidido demorar cinquenta e oito segundos a responder ao que lhe perguntavam. O violoncelista acabaria por ganhar a amável contenda. Como se tivesse percebido a presença de um tercei em sua casa, a quem, por motivos não explicados, deveria falar de si mesmo, e para não ter de fazer o longo discurso que até a vida mais simples necessita para dizer de si mesma algo que valha a pena, o violoncelista sentou-se ao piano, e, após uma breve pausa para que a assistência se acomodasse, atacou a composição. Deitado ao lado do atril e já meio adormecido, o cão não pareceu dar importância à tempestade sonora que se havia desencadeado por cima da sua cabeça, quer fosse por a ter ouvido outras vezes, quer porque ela não acrescentava nada ao que conhecia do dono. A morte, porém, que por seu dever de ofício tantas outras músicas havia escutado, com particular relevância para a marcha fúnebre do mesmo chopin ou para o adagio assai da terceira sinfonia de beethoven, teve pela primeira vez na longuíssima vida a percepção do que poderá chegar a ser uma perfeita convizinhança entre o que se diz e o modo por que se está dizendo. Importava-lhe pouco o que aquele fosse o retrato musical do violoncelista, o mais provável é que as alegadas parecenças, tanto as efectivas como as imaginadas, as tivesse ele fabricado na sua cabeça, o que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naqueles cinquenta e oito segundos de música uma transpiração rítmica e melódica de qualquer vida humana, corrente ou extraordinária, pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também por causa daquele acorde final que era como um ponto em suspensão deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavelmente, alguma cousa ainda tivesse ficado por dizer."

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

http://www.youtube.com/watch?v=cKeley78hM4

Terminei de ler o livro e fui procurar justamente a música do Chopin....acabei caindo aqui. O video acima tem a música. Bom texto o seu.

quarta-feira, 01 fevereiro, 2012  

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