quarta-feira, janeiro 11, 2006

No meu sotão

Acabei um poema. Provavelmente amanhã estará do outro lado, onde essas coisas se pousam por entre as outras que tal..

Se tivesse um sotão, guardaria lá tudo o que escrevi, só para vê-lo ganhar pó dentro de caixotes de papelão canelado suspensos por teias de aranha ancoradas ao telhado e suspensas elas próprias no segredo da sua geometria. Um lugar onde o mais débil exalar arrancasse minúsculas partículas de pó do seu limbo, para que recomeçassem a dança espiralada que as trouxe até ali e com que assombram até a ciência. Um sotão com cordões de luz de súbito acesos ao espremerem-se por entre as frestas do telhado, como holofotes de um pavilhão de mofo e pó, e onde o inalar daquele ar seria sorver o sossego de uma madrugada estendida no horizonte. Queria sentir o ranger das fibras da madeira de pinho seco e pisado e esquecido estendido a meus pés, ainda que não fosse eu o responsável pela sua derrota, dilatando-se e contraindo-se sob o peso do meu corpo, num suave entoar da melodia escondida na natureza das coisas, mesmo que secas ou pisadas ou esquecidas, e não conseguir perceber se também eu ranjo assim. Da obscuridade fendida escapar-se-iam aromas conservados de outros tempos, que se iriam adsorver por entre as raízes do espírito, substituindo o seu imaterial sustento por aquela imagem de um espaço físico, ainda que incorpóreo, e a torrente avassaladora do mundo entraria por ali adentro sem qualquer resguardo, como no segundo em que nasci. Inundada desse ópio instrumental, a alma esquecer-se-ia de sentir e nessa ante-câmara apócrifa, poderia espreitar incólumemente o que escrevi e poisei em caixotes de papelão canelado, cobertos de pó que dança e vibra na luz e não me fariam lembrar de nada.