segunda-feira, dezembro 18, 2006

Interpretações

Tenho andado a esforçar-me por ler uma antologia da poesia de Octavio Paz. Digo tentado porque requer algum esforço da minha parte e já havia falhado uma vez anterior em que não consegui passar do primeiro poema. Não é uma poesia auto-suficiente. As palavras são belas, as expressões magníficas. No entanto, a digestão do poema como um todo, exige um trabalho de interpretação por parte de quem a lê e que nem sempre apetece. Se virmos cada palavra, por vezes conjunção de palavras ou mesmo pequenas estrofe completas, como pequenas unidades ou blocos de uma imagem, penso ser fácil reparar no seu mérito. No entanto o significado global da peça como um todo esconde-se num qualquer recanto por detrás de uma chave de descodificação que talvez só mesmo algum estudo da biografia do autor permita obter. Talvez seja isso o surrealismo. Pretende mostrar a mecânica do pensamento tal como ele é, libertando-se de qualquer interpretação pessoal numa tentativa de representar a realidade de modo mais real, sem distorções de qualquer espécie. Como um sonho, dizem.

Pessoalmente conheço poucas coisas tão simples de entender como sendo intrínsecas e enraizadas a uma, e uma única mente, como os sonhos. Percebo o surrealismo como uma outra forma de expressão da arte, mas não acredito nos seus princípios. Há já algum tempo que os psicoanalistas deixaram de acreditar numa chave universal para a simbologia dos sonhos e passaram a responsabilizar o indivíduo pela custódia do seu próprio conjunto de chaves, obtidas sob a orientação de um especialista, claro. Um sonho é real porque é o que é. Consegue isso porque dizem, se gera e desenvolve sem a censura do consciente e dos mecanismos básicos como a auto-defesa, preservação ou aceitação. Claro que a resposta aos sonhos, mesmo durante o próprio sonho, ainda pode obedecer a estes mesmos princípios: fugimos com medo, lutamos para manter o que acreditamos ser melhor e doemos se os nossos desejos são ignorados. Mas não é disso que falo, mas do estímulo que provoca essas recções: os monstros, as guerras e as inseguranças. Os artistas surrealistas pretendem imitar esses estímulos através da sua arte, e pretendem reproduzir essas reacções. Sinceramente ignoro se esquecem ou não que ambas são fruto de uma árvore única, que não existe em mais lugar algum. E podem até ser semelhantes entre si, mas não passam disso: parecenças. E parecer não é ser.

Estendi-me um pouco. Mas a ideia é esta: sem a chave do autor, não há interpretação fiável. A chave pode ser fornecida directamente pelo artista, ou pode ser obtida indirectamente por outras formas. Mas sem ela o objecto de arte não passa de um objecto cuja arte para mim tanto pode ser isto como aquilo. Neste sentido, todos os poemas são surreais. Enquanto não se explicarem, não se percebem. Afinal, como os sonhos: a imagem é sempre fantástica; o significado depende. A verdade é que valem sempre a pena. Se quiserem, leiam Piedra de Sol. Esse foi o meu início. Para ficarem com uma ideia de como me sinto perdido a ler alguma da sua poesia, fiquem com "Um despertar".

Um despertar

Estava emparedado dentro de um sonho,
Seus muros não tinham consistência
Nem peso: seu vazio era seu peso.
Os muros eram horas e as horas
Fixo e acumulado pesar.
O tempo dessas horas não era tempo.

Saltei por uma fenda: às quatro
Deste mundo. O quarto era meu quarto
E em cada coisa estava meu fantasma.
Eu não estava. Olhei pela janela:
Sob a luz elétrica nem uma viva alma.
Reflexos na vela, neve suja,
Casas e carros adormecidos, a insônia
De uma lâmpada, o carvalho que fala solitário,
O vento e suas navalhas, a escritura
Das constelações, ilegíveis.

Em si mesmas as coisas se abismavam
E meus olhos de carne as viam
Oprimidas de estar, realidades
Despojadas de seus nomes. Meus dois olhos
Eram almas penadas pelo mundo.
Na rua vazia a presença
Passava sem passar, desvanecida
Em suas formas, fixa em suas mudanças,
E em volta casas, carvalhos, neve, tempo.
Vida e morte fluíam confundidas.

Olhar desabitado, a presença
Com os olhos de nada me fitava:
Véu de reflexos sobre precipícios.
Olhei para dentro: o quarto era meu quarto
E eu não estava. A ele nada falta
- sempre fiel a si, jamais o mesmo -
ainda que nós já não estejamos... Fora
contudo indecisas, claridades:
a Alba entre confusos telhados.
E as constelações que se apagavam.

(Trad. António Moura)





Leituras

Certeza

Si es real la luz blanca
de esta lámpara, real
la mano que escribe,
¿ son reales
los ojos que miran lo escrito?


De una palabra a otra
lo que digo se desvanece.
Yo sé que estoy vivo
entre dos paréntesis.


- Octavio Paz -