sábado, abril 21, 2007

A menina dança?

Na sequência de um post publicado no Sinapses e depois da notícia intitulada "A esperança de salvação para as crianças que morrem sem ser baptizadas" do Público online, sou obrigado a dar um tempo a mim mesmo para me recompor antes de tentar digerir tudo isto. Antes de mais, a notícia. E devo dizer que toda a discussão se baseia no que li da notícia já que ainda não tive oportunidade de ler o comunicado oficial do Vaticano. E isto é só uma maneira simpática de dizer que o mais provável mesmo é não o ler.

Ao que parece uma coisa chamada Comissão Teológica Internacional (CTI) esteve encarregada de tratar da questão do limbo desde 2004. E não me refiro ao limbo em que se tenta passar por debaixo de uma vara com os pés assentes no chão e sem tocar em mais nada. No fim de cada tentativa bem sucedida toda a gente berra "Limbo!" e baixa-se a vara um pouco mais. Mas duvido que a CTI fosse gastar muito tempo com isso até porque é coisa que perde a piada rapidamente. Este limbo refere-se antes à sala de espera onde as almas aguardam pacientemente a chegada do senhor doutor para serem consultadas e saberem se está tudo bem ou se vão precisar de mais tempo de tratamento. Pode-se argumentar que para efeitos práticos, O CTI discutir uma ou outra ia dar ao mesmo, mas isso seria simplificar demasiado uma questão já de si demasiado simples.

A saber: há dois tipos de limbo - o limbo dos pais e o limbo das crianças. O limbo dos pais é para as almas que viveram uma vida boa e de acordo com os princípios e moral católica, mas que por serem precipitadas e morrerem antes da segunda vinda de Cristo à Terra, ficam portanto na tal sala de espera do consultório aguardando melhores dias. Espero que hajam revistas que cheguem para todos. O limbo das crianças é para as alminhas ainda mais precipitadas e que morrem mesmo antes de serem baptizadas. Deve perceber-se que o baptismo é o seguro de vida das almas: desde que as condições da apólice sejam cumpridas em vida, o tomador de seguro pode estar sossegado na morte. Caso contrário... limbo com eles. De qualquer das formas as almas seriam privadas do Céu mas pelo menos não iam parar ao Inferno. São Tomás d'Aquino disse que as crianças estariam repletas de alegria e seriam totalmente permeáveis ao desalento de não terem conseguido entrar no Céu. Um argumento na linha do que diz que a ignorância é o paraíso. Quase terminando a estória, deve saber-se ainda que no Sec. V já havia teólogos, ainda que não houvesse CTI. Santo Agostinho foi um deles e na altura lembrou-se que se a salvação eterna só era concedida aos baptizados, então aos que morressem sem o serem só lhes restava o Inferno. Mais tarde no Sec. XIII um outro teólogo lembrou-se que isso não era nada bem e que as crianças iam mas era para esse tal limbo em vez de para o Inferno. Ainda que essa versão não tenha servido ainda para uma resolução teologicamente definitiva, na minha curta experiência de vida posso dizer que já tive contacto pessoal com situações em que esta versão menos extremista foi teologicamente aplicada - só que desta vez não por um teólogo, mas por o que quer que seja que fica hierarquicamente mais abaixo.

Chega-se então à mais recente conclusão sobre o limbo das crianças, ou melhor à "esperança de salvação para as crianças que morrem sem ser baptizadas", pela voz do CTI. E a conclusão é que há "sérias razões teológicas para crer que as crianças não baptizadas que morrem se salvarão e desfrutarão da visão de Deus", tendo em vista que Deus é misericordioso "e quer que todos os seres humanos se salvem" e que "a graça tem prioridade sobre o pecado e a exclusão de crianças inocentes do céu não parece reflectir o amor especial de Cristo pelos mais pequenos". Ainda que esta declaração não tenha propriamente um tom conclusivo, tenham fé que isto é do mais conclusivo que poderão alguma vez ouvir da parte dos representantes da Igreja.

Tendo agora em vista o post anterior, isto pode (e deve) ser interpretado como um suicídio teológico, já que "o problema da fé é que encontrar um único erro nas suas afirmações seria transforma-la imediatamente num único e gigantesco erro, porque a fé se diz ideologicamente absoluta". Mas esta não é a primeira vez que a Igreja se retrai ou se estica consoante o meio ambiente. Não, a Igreja tal como todas as instituições, também parece obedecer à Teoria da Evolução. Este efeito só se torna aparentemente observável em escalas de tempo alargadas, dái a Igreja ser um exemplo perfeito. Já aconteceu por exemplo com a visão da criação do mundo e do aparecimento do Homem (agora estupidamente contestada pela "teoria" do Criacionismo), a inexistência de qualquer tipo de "Éden" geográfico, a visão geocêntrica do Sistema Solar, as Cruzadas, a Inquisição, enfim... Nem todas foram oficialmente admitidas, mas é tudo uma questão de tempo até o serem, e depois até à altura em que deixarão de o ser outra vez. Qualquer pessoa pode ver que a justificação comum a todas essas tomadas e inversões de atitude na lista se devem a manobras de interesse político ou de poder. Esse é o processo evolutivo da Igreja e não é exclusivo sequer dessa Instituição, quanto mais dessa profissão religiosa. Mas algumas chegaram mesmo a ser oficialmente contraditas. Isso não quereria dizer que a serpente já começou a engolir a própria cauda? Sim e ainda bem que repararam. No entanto continua aí, serpenteando com mais ou menos força, a dizer-se a mesma Igreja: imutável, segura, verdadeira, Absoluta. Então porque ainda não foi desmascarada? Como pode uma Instituição dizer-se absoluta e no entanto evoluir?

Porque na verdade não muda nem evolui. Não era bem por aqui que eu me queria explicar. Mas vai ter de ser. A analogia com a serpente a engolir a própria cauda não será a mais precisa, nem a mais simpática. A Igreja é mais como o provervial escorpião que atravessa o rio às costas de uma tartaruga. O escorpião é a Igreja e a tartaruga somo nós. Ora o que acontece é que cada vez que a Igreja faz uma coisa como estas, ela está a picar a tartaruga com a sua cauda venenosa. Então a pergunta passa a ser "Porque é que o escorpião ainda não se afogou?". A resposta é "Porque tartarugas há muitas".

A imagem da serpente está errada porque a Igreja não está propriamente numa de autofagia quando se contradiz, por dois motivos: primeiro porque nunca se contradiz; segundo porque quando se contradiz, fá-lo com muito jeitinho para ninguém dar por ela. Seja como for, não se atinge com os próprios golpes. A Igreja não se contradiz, ou melhor diz que não se contradiz. Consegue isto ao não dizer nunca nada. Deste modo pode dizer exactamente o contrário a seguir que ninguém repara porque dá muito trabalho perceber os teólogos. Assim as admissões de erro nunca são assim tão admissivas e isso faz com que os erros não sejam bem erros. Ou melhor ainda, que sejam erros ou não consoante lhes convier melhor. E isto é conseguido ao ser feito com muito jeitinho. Ou seja, hoje o Sistema Solar orbita em torno do Sol. Muito bem, toda a gente concorda com isso, temos toda a certezinha absoluta que sim, e ficamos todos felizes. Mas já houve uma altura em que era exactamente o contrário e que a única coisa comum era a certezinha absoluta. Ah, mas isso já foi há tanto tempo, coitados, na altura era para o que lhes dava, e olha, deixa lá isso. E pronto. A seguir o CTI junta-se e diz que há "sérias razões teológicas para crer que o Sol está no centro do Sistema Solar", deixando espaço para mais à frente poder dizer que afinal há "sérias razões teológicas para crer que não", e que o Heliocentrismo foi há tanto tempo, coitados, na altura era para o que lhes dava, e pronto, deixem lá isso, com o desplante de uma menina inocente. Só que nessa altura podem não precisar de ser tão simpáticos.

Na Arqueologia da Teologia, esta coisa do limbo deve ser vista como um fóssil duma espécie de transição entre uma menos e outra mais evoluida. O limbo é mais um Archaeopteryx na linhagem evolutiva da Igreja do Criacionismo. E a menina dança. Oh se dança!

1 Comments:

Blogger jorge vicente said...

e eu que pensava que a ideia do limbo já tinha sido posta de parte. pelos vistos, só daqui a 30.000 anos é que a virgindade de maria vai ser posta em causa, apesar de já existirem teólogos revolucionários que dizem que a mulher, afinal, era tão pecadora como nós.

um abraço
jorge vicente

segunda-feira, 07 abril, 2008  

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