segunda-feira, janeiro 16, 2006

Simplice

Hoje deposito aqui um poema de Eugénio de Andrade que se depositou em mim. Se as palavras nesse poema são poucas, as minhas sobre ele serão nenhumas.

TENHO O NOME DE UMA FLOR

Tenho o nome de uma flor
quando me chamas.
Quando me tocas,
nem eu sei
se sou água, rapariga,
ou algum pomar que atravessei.


Eugénio de Andrade

quarta-feira, janeiro 11, 2006

No meu sotão

Acabei um poema. Provavelmente amanhã estará do outro lado, onde essas coisas se pousam por entre as outras que tal..

Se tivesse um sotão, guardaria lá tudo o que escrevi, só para vê-lo ganhar pó dentro de caixotes de papelão canelado suspensos por teias de aranha ancoradas ao telhado e suspensas elas próprias no segredo da sua geometria. Um lugar onde o mais débil exalar arrancasse minúsculas partículas de pó do seu limbo, para que recomeçassem a dança espiralada que as trouxe até ali e com que assombram até a ciência. Um sotão com cordões de luz de súbito acesos ao espremerem-se por entre as frestas do telhado, como holofotes de um pavilhão de mofo e pó, e onde o inalar daquele ar seria sorver o sossego de uma madrugada estendida no horizonte. Queria sentir o ranger das fibras da madeira de pinho seco e pisado e esquecido estendido a meus pés, ainda que não fosse eu o responsável pela sua derrota, dilatando-se e contraindo-se sob o peso do meu corpo, num suave entoar da melodia escondida na natureza das coisas, mesmo que secas ou pisadas ou esquecidas, e não conseguir perceber se também eu ranjo assim. Da obscuridade fendida escapar-se-iam aromas conservados de outros tempos, que se iriam adsorver por entre as raízes do espírito, substituindo o seu imaterial sustento por aquela imagem de um espaço físico, ainda que incorpóreo, e a torrente avassaladora do mundo entraria por ali adentro sem qualquer resguardo, como no segundo em que nasci. Inundada desse ópio instrumental, a alma esquecer-se-ia de sentir e nessa ante-câmara apócrifa, poderia espreitar incólumemente o que escrevi e poisei em caixotes de papelão canelado, cobertos de pó que dança e vibra na luz e não me fariam lembrar de nada.

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Resignação

Pouco ou nada consegui espremer dos dias que passaram. Não sei se por ter apertado com pouca força, se porque eram assim mesmo: secos por natureza. Há uma calma decalcada no aspectos das coisas... o mundo aparenta estar em poisio.. o vento mal se notou, a chuva tem rareado, o tempo arrasta-se reticente entre um dia e outro como se tivesse escolha, e por dentro da roupa pesada encolhem-se ombros ora resignados, ora com frio, em ambos os casos com óbvias diferenças nos resultados, porque se contra o frio esse gesto ainda adianta alguma coisa, no que toca à resignação vale menos que fazer nada. A resignação é a cauterização das terminações nervosas da alma. É uma espécie de segunda pele que enganadoramente se sente. Diz um dicionário que resignação pode ser também coragem face à adversidade. Que seja. Continua a valer o mesmo, apesar da novidade.


Episódios (III)

De quem é o olhar
Que espreita dos meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?

Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo -
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha ideia das cousas.

Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora -
Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua -
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é a minha vida agora:

Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo
E sem ser nada a nada.

E assim a hora passa
Metafisicamente.

- Fernando Pessoa -

segunda-feira, janeiro 02, 2006

Caixas vazias

Enfim.. Dizia eu que serviria este espaço para que as actualizações fossem mais frequentes, e eis que nada. Ainda por cima nesta altura em que há festa por todo o lado, feriados, celebrações, reencontros e desencontros, tanto para dizer por entre o tudo que já foi dito, e mesmo assim não sai nada. Talvez por causa disso mesmo, não tenha saído nada.

Estes foram dias amnesiantes, dias para esquecer outros. Dias que vêm à memória uma última vez antes de serem de lá varridos. Dias como retratos a preto e branco de desconhecidos, uns bonitos, outros feios, mas que não nos dizem nada. Dias. Apenas dias, como caixas vazias que se planeiam vir a encher com isto e com aquilo, mas que continuam assim, vazias, apesar do passar dos dias. Recebi uma carta de duas que contava receber e a caixa do correio como os dias: meios vazios.

Outros virão. Vêm sempre, mesmo quando não se quer que venham, eles vêm ou dizem que vêm ou nem dizem nada mas vêm na mesma, porque há deles que passam despercebidos, que não se distinguem entre si, de tão parecidos que são. Ou então sou eu que não os distingo, e nesse caso é apenas uma questão de esperar o dia que me abra os olhos.